sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

CarTa da MorTe


“Eles passam por mim á entrada. Não me vêem mas sentem-me a rodea-los. Chegam exaustos, em vagões de trem, muito sujos e quase chacinados. A alguns já Caronte lhe pedira o óbolo durante a viagem. Não chegaram até aqui. Lembro-me de um em especial, que quando a mim se entregou, ainda trazia a pisada marcada no rosto. Certamente, morreria e caira. Outros, treparam-lhe em cima talvez. Não havia lugar para tantos. Ás vezes tinha pena deles, mas minha função é levá-los. A outra entidade lhe era reservado o esforço de mantê-los vivos.
Quando chegavam apercebiam-se de que haviam sido enganados. Muitos deles não sabiam. Levavam-nos! O mesmo homem que morria lentamente era aquele que matava. Eram iguais! Levarei um primeiro e certamente o outro depois. Mais tarde ou mais cedo, ambos virão a mim. É curioso como homens matam homens sendo eles conterraneos. Se o homem não tem respeito pela propria humanidade porque motivo teria eu de respeitá-los a eles, reles humanos?
Dividiam-nos! Os pais choravam porque os separavam dos seus filhos, certos de que eles não sobreviveriam e os filhos acenavam, crentes de que voltariam a vê-los. Uns ainda tentavam resistir-me mas a outros lhe era dado um bem maior. Aqueles que resistiam eram feitos prisioneiros. Os outros, tornavam-se meus inquilinos. Não pagam renda e têm dois destinos á escolha. Empurravam-nos com as pontas das armas, mantendo o dedo no gatilho. Havia homens e mulheres e muitas crianças. Alguns ainda traziam a Estrela de David presa no braço. Caiam e ajoelhavam-se. Aqui havia outro que me custou levar. Havia caído. Chovia nesse dia e enterrara os joelhos na lama com tanta força que dias e dias depois, ainda lá estava o molde da perna, marcado no chão lamacento, agora íntegro e seco. Não durou muito, mas resistiu até á ultima. A sua mulher tinha sido feita prisioneira e seu filho, morreu com certeza, muito antes dele. Quando chegou a mim, pediu-me que trouxesse o pai e acedi ao seu pedido. Ambos se livraram de um destino muito pior, sobreviver. A mãe morrera algum tempo depois, escrava de experiencias cientificas. Dizem, quem lhe vira o corpo, que padecera de fortes convulsões cutâneas, mas quando chegou a mim vinha limpa e bela. Era judiã. Já havia recebido seu pai e também dois seus irmãos. Toda uma familia, todas as gerações ali, vitimas de uma humanidade inexistente.
Uma vez lembro-me bem, chegou uma criança. Era loira e padecia de uma grave enfermidade. Pelo menos, pensavam na época. Veio a saber-se que se chamava Varicela. Um soldado veio dar-lhe a mão a fim de guiá-la. Ao que me pareceu, ainda lhe restavam sinais de humanidade, ainda podia redimir-se ou negar-se. Mas guiou-a sem a olhar. Largou-a! O medo do contagio era imenso. Esse mesmo soldado viria a morrer antes da pobre criança, por se ter revelado demasiadas vezes humano. Foi executado do outro lado do arame e enterrado numa vala comum, juntamente com as pessoas que ajudou a matar.
Um dia fartei-me e decidi ver por mim mesma. Entrei e vasculhei todas as salas. Podia ver
pobre coitados, que faleceriam em breve, a cortarem os cabelos das mulheres, a tirarem os dentes de ouro e a arrancaram relógios dos pulsos, antes de os enviarem para as camaras de gás. E noutra sala, havia um médico que escolhia a dedo, aqueles que serviam e aqueles que eram dispensáveis. Ele pensava ser o Destino! Julgava-se melhor que todos e pior que nenhum. Exibia a sua bata branca quando saía do campo. Eu segui-o uma quantas vezes. Tem familia, filhos e mulher. Da última vez foi para levá-lo.
Do outro lado, sentia-se um calor imenso, quase incendiário dos fornos em brasa. Era para ali que iam os desperdicios humanos, depois de lhes terem arrancado os cabelos e as peles. Quantos submarinos se isolaram com aqueles cabelos mantendo-se a flutuar. E as peles, eram usadas como sabonetes pelos soldados. Podia observá-los a lavarem-se, esfregando todas aquelas peles pelo corpo, embutigadas de sabão saloio e rasgando-se pouco a pouco do uso exagerado. Não parecia ser um problema, arranjar-se-iam outras idênticas, tão suaves como as primeiras.
Parecia haver naquele lugar duas realidades, duas dimensões com sentimentos diferentes, com paladares e olhares diferentes, com cheiros muito diferentes. Voltei para a entrada! Tinha que recebê-los sabendo que os iria levar em breve. É leve a minha cortesia mas servia para consolá-los daquele terrivel destino. Alguns soltavam-me olhares, mesmo sabendo que tinham os dias contados. Outros, persentindo a minha presença, caminhavam e olhavam para trás. É incrivel de como sou invisivel para uns e tão nitida para outros, sendo ambos humanos.
Tenho pena por muitos deles. Foi o homem que ditou os seus caminho não eu. Muitos só seriam levados dali a muitos anos, quando fossem pais ou avós. Na minha lista consta que a maioria deles não tinham ali o seu fim. Mas a falta de humanidade, a falta de misericórdia, a deficiente ambição rezaram mais alto. Todos eles se foram porque um homem se achou Deus, julgando-os pela sua origem e não pelas suas virtudes e defeitos. Um homem que também eu levei, quando na minha lista, o seu nome constava. Não posso antecipar mortes nem adiá-las. Sou uma força do Universo e não me é permitido fazer batota. Chamo-me Morte! Ainda vivo naquele campo sem cor. Continuo á porta. Hoje vejo passar turistas, desejosos de saberem que histórias se contam daquele lugar amaldiçoado. Para minha surpresa, vi passar não á muito, a mesma loira criança que seguia pelas mãos do soldado. Era robusta e fazia-se acompanhar de duas crianças por ambas mãos. Restavam-lhe ainda moléstias da varicela. É uma daquelas que constam no fim da minha lista. Não estava destinada a ter um destino tão miserável, tão submisso. Guiava as duas crianças pela mão. Então, aquele soldado levantou-se e olhou-as, o mesmo que a levara pela mão quando era ainda pequena. Surpreendeu-se como algo tão frágil pudera ter sobrevivido quando ele não o fez. Eu pus-lhe a mão sobre o ombro e disse-lhe:
“Ser humano vem com uma maldição. Somos nós que fazemos o nosso caminho. Tu escolhes-te o teu, há que saber fazer a escolha certa. A sua inocência acabou por salvá-la e a tua culpa fez de ti mais um cadáver. Quando se escolhe um caminho a passagem fecha-se. É impossivel voltar atrás.”
Escrevo esta carta porque o meu trabalho está terminado. O homem ocupou o meu lugar. Ele decide quem morre e quem sobrevive. Eu fico ali á entrada do campo, á espera que me chamem para ocupar de novo o lugar que me pertence.”


(Em memória das vitimas do Genocidio)

Sem comentários: